A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social
Fernando Filgueiras
Departamento de Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Fernando Filgueiras
Departamento de Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Este
artigo aborda o tema da corrupção no Brasil e trata da antinomia
existente, no âmbito da opinião pública brasileira, entre normas
morais, que regulam os significados políticos da corrupção, e prática
cotidiana na esfera pública. O artigo aborda o conceito de corrupção
e o modo como ele é construído no Brasil, além de construir uma
perspectiva teórica balizada em análise empírica. Está baseado nos
resultados do survey sobre corrupção, realizado no ano de 2008.
Palavras-chave: corrupção, democracia, moralidade, práticas sociais
ABSTRACT
This
article addresses the issue of corruption in Brazil and comes from
the contradiction, existing within the Brazilian public opinion,
between moral obligations and the meanings of political corruption.
The article discusses the concept of corruption and how it is built
in Brazil, and also builds a theoretical perspective on corruption
through empirical analysis. It is based on the results of the survey on
corruption, conducted in year 2008.
Keywords: corruption, democracy, morality, social practices
Introdução
Quando
se abre o jornal, no Brasil, é raro não nos defrontarmos com
escândalos no mundo político. Casos de malversação de recursos
públicos, uso indevido da máquina administrativa, redes de clientelas
e tantas outras mazelas configuram uma sensação de mal-estar
coletivo, em que sempre olhamos de modo muito cético os rumos que a
política, no Brasil, tem tomado. Criam-se, dessa forma, um clamor
moral e um clima de caça às bruxas que geram instabilidade e um muro
de lamentações e barreiras a projetos de políticas públicas. Contudo,
apesar dessa sucessão de escândalos no Brasil, existe uma sensação
de impotência por parte da sociedade; a corrupção é tolerada e os
cidadãos ficam apenas aguardando qual será o próximo escândalo que
circulará nos jornais.
Essa
sensação de mal-estar coletivo com a corrupção cria concepções de
senso comum acerca de uma natural desonestidade do brasileiro. Um dos
traços característicos do senso comum no Brasil é que o brasileiro
típico tem um caráter duvidoso e que, a princípio, não se nega a
levar algum tipo de vantagem no âmbito das relações sociais
ordinárias. Por isso, vários indicadores de confiança apontam o
Brasil como um país onde a desconfiança impera. Para além do senso
comum, esse tipo de leitura da realidade social brasileira converge
para termos centrais das interpretações do país e a produção de
conceitos no mundo acadêmico também incorpora esse tipo de visão,
sendo o brasileiro típico um cidadão voltado para seus desejos
agonísticos, que se expressam em formas sociais tais como o jeitinho e
a malandragem.
Culpa-se,
sobremaneira, nossa herança histórica deixada pelo mundo ibérico,
que teria feito com que o Brasil não conhecesse o processo de
racionalização típico do Ocidente e incorporasse, os valores e
princípios do mundo protestante, ascético e voltado para uma ética
dos deveres e do trabalho. O projeto de interpretação do Brasil
fornecido pela vertente do patrimonialismo tende a tomar esse
pressuposto como característica antropológica, alicerçado em uma
visão muitas vezes derivada de outras experiências sociais. Afinal, a
herança do patrimonialismo ibérico deixou algumas mazelas na
constituição da sociedade brasileira, o que acarretaria, sempre,
projetos de ruptura com o passado.
Este
artigo analisa o problema da corrupção no Brasil a partir da
antinomia entre normas morais e prática social, defendendo a hipótese
de que a prática de corrupção não está relacionada a aspectos do
caráter do brasileiro, mas à constituição de normas informais que
institucionalizam certas práticas tidas como moralmente degradantes,
mas cotidianamente toleradas. A antinomia entre normas morais e
prática social da corrupção no Brasil revela uma outra antinomia: a
corrupção é explicada, no plano da sociedade brasileira, pelo fosso
que separa os aspectos morais e valorativos da vida e a cultura
política. Isso acarreta uma tolerância à corrupção que está na base
da vida democrática pós-1985.
Na
primeira seção do artigo, apresentamos o lugar da corrupção nos
projetos de interpretação do Brasil. Na segunda seção, discutimos o
conceito de corrupção e os diferentes marcos metodológicos para seu
estudo. Na terceira seção, tratamos de uma perspectiva analítica
alternativa, na dimensão da cultura política. Na quarta seção do
artigo, tratamos da análise empírica da corrupção.
O lugar da corrupção no Brasil
Não
há, no âmbito do pensamento social e político brasileiro, uma teoria
da corrupção no Brasil. Pode-se dizer, grosso modo, que esse tema
foi deixado de lado nas reflexões acadêmicas e teóricas sobre o
Brasil, não havendo, nesse sentido, uma abordagem que dê conta do
problema da corrupção no âmbito da política, da economia, da
sociedade e da cultura de forma abrangente. Os estudos sobre
corrupção no Brasil são recentes, realizados a partir de abordagens
comparativas e institucionalistas, sem a pretensão de uma teoria
geral, de cunho interpretativo.
Todavia,
quando nos deparamos com o tema da corrupção, há, comumente, uma
vertente interpretativa do pensamento político e social brasileiro que
é mobilizada para explicar os casos de malversação de recursos
públicos e uma suposta imoralidade do brasileiro. O problema do
patrimonialismo é comumente mobilizado para descrever a corrupção,
tendo em vista a cultura política, a economia, a política e a
sociedade, de acordo com o problema da modernização, do surgimento
das modernas burocracias e da legitimação da política moderna. A
incorporação do conceito weberiano de patrimonialismo, no âmbito de
algumas interpretações do Brasil, normalmente é o foco analítico para
o problema da corrupção, o qual recortaremos a fim de compreender o
modo como o conceito de corrupção é construído no contexto das
disputas intelectuais do pensamento social e político brasileiro.
Supõe-se
que a tradição política brasileira não respeita a separação entre
o público e o privado, não sendo, o caso brasileiro, um exemplo de
Estado moderno legitimado por normas impessoais e racionais. O
patrimonialismo é a mazela da construção da República, de maneira que
ele não promoveria a separação entre os meios de administração e os
funcionários e governantes, fazendo com que esses tenham acesso
privilegiado para a exploração de suas posições e cargos. Dado o
patrimonialismo inerente à construção da cena pública brasileira, a
corrupção é um tipo de prática cotidiana, chegando mesmo a ser
legitimada e explícita no âmbito de uma tradição estamental e
tradicional herdada do mundo ibérico.
O
patrimonialismo, nosso vício de origem, é fruto de um Estado que
intervém na sociedade e coordena e comanda, pelo alto, a exploração
do mundo produtivo e mercantil. Tal vício de origem é nossa herança
do mundo ibérico (FAORO, 2000). De acordo com Faoro, a sociedade
ibérica subordinou-se ao Estado, de modo que em Portugal formou-se um
absolutismo precoce, que alojou os estamentos da sociedade nos
órgãos da burocracia. O estamento burocrático do mundo ibérico
comportava-se como proprietário da soberania, criando um sistema de
exploração e dominação que se reproduziu como marca fundamental de
nossa tradição política por meio de uma corrupção sistêmica1.
Ainda
segundo Faoro, o patrimonialismo no Brasil é o resultado de uma
relação entre Estado e sociedade em que o primeiro oprime a segunda
pela reprodução de um sistema de privilégios e prebendas, destinadas
aos estamentos alojados na burocracia estatal. Esse estamento
burocrático coordena e administra o Estado sem conhecer regras
impessoais e racionais, que separem os meios de administração e a
função burocrática propriamente dita. O resultado do patrimonialismo é
que a corrupção faz parte de um cotidiano de nossa constituição
histórica. O clientelismo, a patronagem, o patriarcalismo e o
nepotismo constituem tipos de relação do Estado com a sociedade em
que a corrupção é a marca fundamental; afinal, à sociedade nada resta
senão buscar o acesso aos privilégios do estamento burocrático
mediante a compra de cargos públicos e títulos de honraria, favores
da burocracia e a participação no erário do Estado. O conceito de
patrimonialismo tem uma rigidez histórica que caracteriza um elemento
estrutural da sociedade brasileira. Dessa forma, a corrupção é fruto
da herança deixada pelos colonizadores portugueses, que confere ao
Brasil um forte caráter de sociedade tradicional, onde a corrupção é
prática corriqueira em função da ausência de capitalismo, em
particular do mercado. Como destaca Faoro:
Tudo acabaria - mesmo alterado o modo de concessão do comércio - em grossa corrupção, com o proveito do luxo, que uma geração malbaratara, legando à estirpe a miséria e o fumo fidalgo, avesso ao trabalho. A corte, povoada de senhores e embaixadores, torna-se o sítio preferido dos comerciantes, todos, porém, acotovelados com a chusma dos pretendentes - pretendentes de mercês econômicas, de cargos, capitanias e postos militares. (...) A expressão completa desta comédia se revela numa arte, cultivada às escondidas: a arte de furtar. A nota de crítica e de censura flui de duas direções, ao caracterizar o enriquecimento no cargo como atividade ilícita: a ética medieval, adversa à cobiça, e a ética burguesa, timidamente empenhada em entregar o comércio ao comerciante (FAORO, 2000. p. 99-100).
Na
linhagem do pensamento político brasileiro derivada de Faoro, o
patrimonialismo é um problema típico do Estado, conforme uma rigidez
estrutural na sociedade brasileira (CARVALHO, 1997). A herança
deixada na organização do Estado e da atividade econômica por
Portugal explica a corrupção do presente. A partir desse conceito de
patrimonialismo a corrupção no Brasil é resultado da constituição
histórica do Estado e da sobreposição do estamento burocrático à
sociedade. Acreditamos, por outro lado, que a corrupção não pode ser
explicada, hoje, pelo conceito de patrimonialismo de Faoro, porque
não há, no Brasil, um sistema de legitimação tradicional e as
práticas de corrupção não são apenas derivadas do poder estatal, mas
têm, também, uma ressonância na cultura política.
Sérgio
Buarque de Hollanda ressalta que o problema do patrimonialismo não
se resume ao Estado, mas é, também, um problema societal. De acordo
com Hollanda, o patrimonialismo é o resultado de uma cultura da
personalidade, na qual não existem regras impessoais de relação no
plano da sociedade e entre a sociedade e o Estado. No Brasil
imperaria "(...) certa incapacidade, que se diria congênita, de fazer
prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as
relações de caráter orgânico e comunal, como o são as que se fundam
no parentesco, na vizinhaça e na amizade" (HOLLANDA, 1995, p.137).
Essa seria a herança deixada pelo mundo ibérico e sua cultura da
cordialidade, marcadas pela inaptidão do brasileiro para construir
uma ordem pública e também uma democracia2.
O problema dessa abordagem é reconhecer que a cultura política
brasileira assenta-se apenas no mundo dos sentimentos, sem reconhecer um
traço de modernidade e racionalização da sociedade. Esse tipo de
leitura empobrece a análise e engessa a possibilidade de mudança
social. Além disso, enquadra a explicação da corrupção à formação
do caráter do brasileiro e sua natural desonestidade, com o risco de
naturalizar a corrupção a partir da existência da família patriarcal,
como expressa Hollanda:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente [organização patriarcal de sociedade], compreenderem a distinção fundamental entre público e privado. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário "patrimonial" do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário "patrimonial", a própria gestão pública apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. (...) Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático (HOLLANDA, 1995, p. 145-146).
O
patrimonialismo é o inimigo privilegiado do pensamento social e
político brasileiro, de forma que todos os projetos de modernização
do Estado, da economia e da sociedade passam pela ideia de ruptura
com nosso passado ibérico e afirmação de um modelo de organização
estatal moderna, pautado pela impessoalidade e pela racionalidade na
relação entre Estado e sociedade (VIANNA, 1999). A ruptura com o
passado significa a afirmação de um modelo weberiano de Estado,
fundamentado em uma concepção modernizante capaz de fazer submergir
nossos vícios de origem, balizados no patrimonialismo.
Ao
longo do século XX, o Brasil assumiu uma postura modernizadora,
centrada na busca dos elementos de racionalização e transformação
cultural, capazes de balizar um projeto de formação da ordem pública
conforme os ditames do capitalismo e do desenvolvimento político. De
um lado, seria possível afirmar que essa ruptura jamais se processou
no caso brasileiro, já que o patrimonialismo no Brasil não teria o
mesmo matiz do conceito de patrimonialismo presente em Weber. O
patrimonialismo brasileiro passou a olhar para o futuro, assumindo um
projeto modernizante que o ocultasse, não se legitimando, dessa
forma, pelo passado (SCHWARTZMAN, 1982). Por outro lado, o projeto
modernizador no Brasil teria no Estado seu elemento de concretização,
à medida que se consolidasse a separação entre os meios de
administração e o exercício de cargos e funções governamentais. O
Estado, dessa forma, assumiu, acima da sociedade, o papel de sujeito
republicano, capaz de criar uma ordem pública e um projeto de
democracia que passasse pela transformação da sociedade (VIANNA,
1999). Isso acarretou o fato de vincularmos, historicamente, o
problema da corrupção a uma visão estatal, em que a correção das
delinquências do homem público brasileiro passaria pela mudança da
máquina administrativa, e não dos valores e práticas presentes na
sociedade.
Dessa
maneira, a partir dos anos 1930, tendo em vista esse projeto
modernizador conduzido pelo Estado, o tema da administração e da
gestão pública tornou-se central. A partir desse momento,
produziu-se, no Brasil, uma série de reformas no aparato
administrativo do Estado, tendo como finalidade a implosão de nosso
passado patrimonialista, a afirmação de uma racionalidade típica do
Ocidente e o fim da corrupção como prática cotidiana e corriqueira3.
A corrupção, como um problema do Estado brasileiro, seria combatida
se a ruptura com o passado patrimonialista e estamental da
administração pública se concretizasse mediante a modernização da
máquina administrativa.
Esse
projeto de ruptura com o passado quer renegar nossa história a um
segundo plano, direcionando o olhar a um porvir colocado nos
horizontes de interpretação do Brasil. Sendo o patrimonialismo um
problema estatal (FAORO, 2000) e societal (HOLLANDA, 1995), nossos
vícios de origem - a corrupção em particular - são explicados por um
traço distintivo de caráter do brasileiro, que estaria relacionado a
uma história de parasitismo social explícito, tendo em vista uma
sociedade estamental e patriarcal, pouco afeita ao capitalismo e ao
mundo dos interesses. Uma outra via de abordagem da corrupção no
Brasil seria considerar os aspectos da cultura política, tomando uma
condição antropológica do brasileiro e pela análise de seu caráter.
Esse
traço de caráter propenso à corrupção na política seria uma
característica antropológica, que explicaria nossa cultura imoral e
degenerada. Bonfim trata o parasitismo social brasileiro a partir de
uma homologia com um organismo biológico doente (BONFIM, 2002). Para
Bonfim, o parasitismo social brasileiro e a degeneração moral são
explicados pela hereditariedade do mundo ibérico, que sempre esteve
associado, em sua história, à exploração do além-mar e de
civilizações não-européias, e seu efeito seria o fato de a corrupção
estar incrustada na sociedade, definindo um mundo cotidiano de
vícios. Para o autor:
Nos grandes, a corrupção faustosa da vida da corte, onde os reis são os primeiros a dar o exemplo do vício, da brutalidade, do adultério: Afonso VI, João V, Filipe V, Carlos IV. Nos pequenos, a corrupção hipócrita, a família do pobre vendida pela miséria aos vícios dos nobres e dos poderosos (BONFIM, 2002, p. 694).
Assim,
a corrupção não poupa nem o mundo popular nem os estamentos
superiores da sociedade, definindo uma concepção centrada em uma
formação distorcida pelos eventos do passado, sendo o brasileiro um
desconhecedor das artes, da ciência e dos interesses, que delimitam a
sociabilidade do capitalismo e suas instituições. Como não fomos
protagonistas da modernidade, criou-se no Brasil um senso permanente
de irresponsabilidade e indolência, que definem os traços de uma
cultura dos sentimentos, de uma cordialidade intrínseca, incapaz de
incorporar o mundo impessoal e de regras formais.
Uma
antropologia do Brasil, nessas condições, apenas pode definir a
busca desenfreada por vantagens, a malandragem e o jeitinho como
condicionantes do caráter do brasileiro. De acordo com Da Matta
(1980), o jeitinho e a malandragem respeitam a um processo moral
definido no plano de uma cultura da personalidade. O dilema
brasileiro, segundo Da Matta, seria explicado por dicotomias entre o
certo e o errado, entre o grande e o pequeno, entre a elite e a
massa. Essas dicotomias explicariam a situação em que o "você sabe
com quem está falando?" se torna uma situação típica da sociedade
brasileira. Nesse quadro antropológico, a corrupção seria resultado
do jeitinho e da malandragem, que representam estratégias de
sobrevivência em meio a uma moralidade social marcada pela distinção.
O
problema desse tipo de leitura da realidade brasileira é que o uso
de dicotomias especifica muito mais um traço de caráter do que opera
nos dois extremos. A corrupção e o jeitinho, dessa forma, são uma
estratégia para minimizar os efeitos da distinção entre indivíduo e
pessoa. A corrupção, portanto, assumiria uma forma cotidiana, em que
esse tipo de interpretação não consegue superar o fato de que o
brasileiro teria um caráter de malandro, que sempre usa do artifício
da corrupção para obter algum tipo de vantagem. Como observa Souza
(2001), interpretações realizadas a partir de dicotomias, como faz Da
Matta, tendem a simplificar excessivamente a realidade, sem perceber
que a sociedade se constitui de processos mais amplos que configuram
a realidade social.
O
fato é que diferentes projetos de interpretação do Brasil tomam a
corrupção como algo inerente à cultura da personalidade e a diferença
entre indivíduo e pessoa e a afirmação de uma cultura da
personalidade no Brasil ocorre pela incorporação da sociologia
weberiana para interpretar. Do ponto de vista interpretativo, essa
cultura delimita um caráter sempre voltado para os vícios e as
imoralidades cometidas pelo brasileiro, sem se atentar, contudo, para
os processos mais amplos de configuração de uma sociologia política
da corrupção no Brasil. O caráter do brasileiro, como muitos
intérpretes procuram delimitar, termina por estabelecer uma armadilha
analítica e conceitual, incapaz de perceber que dicotomias mais
obscurecem nossas imoralidades do que propriamente as esclarecem. Ao
se centrarem no caráter do brasileiro, seja o da cordialidade, o da
malandragem ou o da busca estratégica por privilégios, não
compreendem a corrupção por seu real alcance no plano da sociedade.
Dessa
forma, não há, em uma real sociologia política do Brasil, espaço
para análises dicotômicas. No caso da corrupção no Brasil, seu
lugar é o da existência de uma antinomia entre o mundo moral e o
mundo da prática, porquanto ambos sejam regidos por princípios
diferentes que definem uma tensão entre os valores e o mundo real da
sociedade brasileira. A análise da corrupção no Brasil, portanto,
demanda a construção de mecanismos analíticos capazes de compreender e
incorporar essa natureza antinômica da corrupção na política
brasileira, capaz de explicar porque o brasileiro tolera a corrupção.
A corrupção não está relacionada ao caráter do brasileiro, mas a uma
construção social que permite que ela seja tolerada como prática.
A construção do conceito de corrupção
Afirmamos
anteriormente que a temática da corrupção é recente, e que não há
uma teoria da corrupção no Brasil, no plano dos pensamentos social e
político brasileiros. No caso da literatura especializada, pode-se
dizer que o tratamento sistemático sobre a corrupção remonta aos anos
1950, com a emergência de uma perspectiva funcionalista para os
estudos das ciências sociais. Os estudos mais sistemáticos sobre o
tema da corrupção surgem nos Estados Unidos, tendo em vista o
problema da modernização e abordagens comparativas tomando o tema do
desenvolvimento (FILGUEIRAS, 2006).
Ao
relacionar o problema do desenvolvimento político e econômico ao
tema da corrupção, a abordagem funcionalista procura compreender o
modo como ela pode contribuir ou emperrar o desenvolvimento de
sociedades tradicionais e subdesenvolvidas. Como pano de fundo, há
uma preocupação com os processos de modernização, de acordo com um
caráter sistêmico que a corrupção assume em sociedades tradicionais.
Como já observava Merton (1970), a corrupção é uma função
manifesta e latente de sociedades tradicionais, onde a corrupção é a
própria norma, em comparação com a modernidade. Como função
manifesta, a corrupção tem por consequência fomentar ou impedir a
modernização, representando, em muitos casos, eventuais benefícios
para a constituição de uma ordem moderna, balizada, principalmente,
nas iniciativas do espírito capitalista. Para a sociologia da
modernização, há uma relação necessária entre corrupção e
modernização, uma vez que cenários de larga corrupção definem uma
baixa institucionalização política e, por sua vez, uma ordem fraca
para a mediação e a adjudicação de conflitos (HUNTINGTON, 1975).
Pela
abordagem funcionalista, a corrupção seria típica de sociedades
subdesenvolvidas, representando um tipo de prática aceita diante da
baixa institucionalização política. Os momentos de mudança social
favorecem a corrupção pelo hiato existente entre modernização e
institucionalização, tornando-a típica de sociedades em processo de
mudança social. Em cenários de baixa institucionalização política,
como nota Huntington, a corrupção tende a ser um tipo de ação mais
acentuada, porquanto a modernização implique novos atores na cena
política, ensejando clivagens sociais e um comportamento pouco
conducente à norma.
Pela
abordagem funcionalista, que se tornou dominante na década de 1960, a
corrupção poderia cumprir uma função no desenvolvimento. Se mantida
sob controle, a corrupção pode ser uma forma alternativa, encontrada
pelos agentes políticos, de articular seus interesses junto à
esfera pública. Por exemplo, a construção de máquinas políticas visa a
influenciar o conteúdo das decisões tomadas na arena legislativa,
por meio da persuasão das elites partidárias. A constituição dessas
máquinas políticas, nas quais a corrupção é o elemento chave,
colabora para o arrefecimento da disputa entre clivagens sociais que
surgem com a modernização, servindo, dessa forma, para o
desenvolvimento político, econômico e social (SCOTT, 1969). A
corrupção é explicada, portanto, como desfuncionalidade inerente de
uma estrutura social de tipo tradicional, que, no contexto da
modernidade, gera instabilidade no plano político e econômico. A
corrupção, dessa forma, pode cumprir uma função de desenvolvimento,
uma vez que ela força a modernização. Porém, sua função de
desenvolvimento é cumprida desde que ela esteja sob o controle das
instituições políticas, de tipo moderno. Do ponto de vista dos
benefícios, a corrupção pode agilizar a burocracia, ao tornar mais
rápida a emissão de documentos e autorizações formais por parte do
Estado. A corrupção azeita o desenvolvimento ao estabelecer um laço
informal entre burocratas e investidores privados que favorece o
desenvolvimento econômico (LEFF, 1964).
Ao
absorver o problema da modernização como núcleo central para
explicar a corrupção, a vertente funcionalista busca compreender os
custos e os benefícios da corrupção para o desenvolvimento, de acordo
com uma premissa de que seu entendimento considere os aspectos
funcionais e disfuncionais dos sistemas políticos. A partir dos anos
1970, a literatura sobre o tema da corrupção deu uma guinada
metodológica, direcionando-se para o tema da cultura e o tema do
desenvolvimento passou a ser considerado na dimensão da cultura
política, partindo da premissa de que a cultura é proeminente em
relação ao político e ao econômico, ao definir os valores dentro da
estrutura social. Apesar de essa vertente ter rompido com a questão
dos benefícios da corrupção, ao incorporar o problema dos valores,
ela não rompeu com a estrutura metodológica do funcionalismo.
Os
trabalhos ligados à conotação da cultura política ligam a corrupção
às interações construídas pelos atores sociais, refletindo
experiências e valores que permitem ao indivíduo aceitar ou rejeitar
entrar em um esquema de corrupção. Ao lado do sistema institucional e
legal, o sistema de valores é fundamental para motivar ou coibir as
práticas de corrupção no interior de uma sociedade. A modernização
implica a mudança dos padrões de valores e de ação por parte dos
atores sociais. A corrupção, nessa lógica, representa, antes de tudo,
a permanência de elementos tradicionais que utilizam, especialmente,
o nepotismo, a patronagem, o clientelismo e a penetração junto à
autoridade política para obter vantagens e privilégios. Os trabalhos
ligados à vertente da cultura política receberam a influência do
trabalho de Edward Banfield sobre culturas locais (BANFIELD, 1958).
Nessa vertente, o tratamento da corrupção parte de uma concepção
metodológica comparativa, decorrente de culturas locais tradicionais
contrapostas a uma cultura universal moderna. Dessa forma, a
corrupção dependeria de uma mudança de valores básicos da sociedade
que demandariam processos mais lentos de mudança institucional
(LIPSET e LENZ, 2002).
Dos
anos 1980 para cá, ocorreu uma virada metodológica das pesquisas
sobre a corrupção, ao incorporar uma abordagem econômica para um
problema político, centrada, principalmente, na análise dos custos da
corrupção para a economia de mercado em ascensão. Isso se deve ao
fato de, a partir da década de 1980, o tema da corrupção florescer
junto com os processos de liberalização econômica e política,
especialmente nos países periféricos, como os da América Latina e da
Ásia, e nos países do Leste-Europeu e na Rússia (JOHNSTON, 2005).
Ademais, a literatura de viés econômico sobre o tema da corrupção
percebeu que os custos superam os benefícios apontados pela teoria
funcionalista. A literatura especializada sobre o tema da corrupção,
dos anos 1980 para cá, tem sido dominada pela economia, de maneira a
compreendê-la como o resultado de configurações institucionais e o
modo como elas permitem que agentes egoístas autointeressados
maximizem seus ganhos burlando as regras do sistema político
(ROSE-ACKERMAN, 1999). O problema da corrupção é explicado de acordo
com conceitos derivados de pressupostos econômicos como o rent-seeking
e a ação estratégica de atores políticos no contexto de
instituições que procuram equilibrar esses interesses com noções
amplas de democracia (FILGUEIRAS, 2008b).
A
corrupção é explicada por uma teoria da ação informada pelo cálculo
que agentes racionais fazem dos custos e dos benefícios de burlar uma
regra institucional do sistema político, tendo em vista uma natural
busca por vantagens. Basicamente, a configuração institucional define
sistemas de incentivos que permitem aos atores acumularem utilidade.
Uma postura rent-seeking, que é esperada quando as
instituições permitem que um agente burle as regras do sistema,
ocorre quando ele maximiza sua renda privada em detrimento dos
recursos públicos (KRUEGER, 1974; TULLOCK, 1967). Dessa forma,
situações de monopólio de poder e de recursos favorecem situações em
que os agentes preferem cometer a corrupção do que seguir as regras
do sistema.
As
proposições de reformas institucionais, derivadas dessa vertente
econômica de análise da corrupção, tendem a ver o Estado - que detém o
monopólio do uso da força - como uma instituição naturalmente
corrompida, o lugar privilegiado dos vícios e da malversação de
recursos, e devem caminhar no sentido de minimizar seu papel na
sociedade e reduzir os incentivos para a prática da corrupção, por
meio da redução do poder da burocracia (ANECHIARICO e JACOBS, 1996).
Pelo postulado econômico, a democracia e os sistemas de probidade,
devem seguir as regras do mercado, porquanto seja esse o mundo da
impessoalidade e uma estrutura competitiva que minimiza os sistemas
de incentivo à corrupção. A par disso, a literatura contemporânea tem
se dedicado a pensar os sistemas de integridade pública na dimensão
da sociedade civil, da mídia e de outros atores importantes no
controle da corrupção. Afirma-se, em confrontação com os aspectos
econômicos da corrupção, um aspecto público e mais orientado ao
político. Reforça-se a ideia de accountability pela via da
democracia, em que o problema do controle da corrupção demanda um
processo de democratização do Estado que está além da questão
administrativa e burocrática (WARREN, 2004).
O
problema dessa abordagem econômica é que ela tende a naturalizar a
corrupção na órbita dos interesses materiais, sem perceber que ela
está relacionada a processos sociais e, por conseguinte, simbólicos.
Assim, a corrupção, para além da questão propriamente monetária e
contábil, está relacionada a processos sociais que levam em
consideração valores e normas que, além do institucional e do formal,
consideram aspectos informais e culturais. A análise da corrupção
deve atender a esses aspectos sociológicos implicados no
reconhecimento de normas formais e informais, porquanto a passagem do
privado ao público ocorre em meio a configurações de valores e
normas. Ou seja, é fundamental pensar o aspecto normativo envolvido no
conceito de corrupção, porque ele tem uma natureza fugidia, já que
depende de concepções normativas a respeito das próprias instituições
sociais, em que pesem, dessa forma, os valores que definem a própria
noção do que vem a ser o interesse público.
É
fundamental pensar a corrupção em uma dimensão sistêmica que alie
a moralidade política - pressuposta e que estabelece os significados
da corrupção - com a prática social propriamente dita, na dimensão
do cotidiano. Resgatar uma dimensão de moralidade para pensar o tema
da corrupção significa buscar uma visão abrangente que dê conta dos
significados que ela pode assumir na esfera pública. É a partir
dessas significações que podemos observar as formas que ela pode
assumir na sociedade, de acordo com aspectos políticos, sociais,
culturais e econômicos. Na próxima seção, apresento um modelo de
análise da corrupção.
Um modelo analítico para o estudo da corrupção no Brasil
A
corrupção, dessa forma, pode ser compreendida levando-se em
consideração aspectos morais que estão pressupostos na prática social
ordinária. É fundamental considerar os aspectos normativos
envolvidos no tema da corrupção e o modo como a construção de sua
significação social depende de valores que circulam no plano da
sociedade. A legitimidade da ação política apenas é construída com
a pressuposição desses valores fundamentais que configuram o que é e
o que não é corrupção; ou seja, valores que configuram uma antinomia
entre interesse público e corrupção, tendo em vista concepções de
mundo e valores diferentes na moralidade política4.
Por esse postulado, a corrupção deve ser analisada em uma dimensão
sistêmica que considere, de um lado, a existência de valores e normas
que tenham uma conformação moral e, de outro lado, a prática
social realizada no âmbito do cotidiano de sociedades.
Argumento
que esses valores nascem de um processo deliberativo e têm uma
natureza consensual no interior da ordem política, porquanto
representam categorias com as quais todos possam concordar e que
consideram importantes para a configuração de um bom governo
(FILGUEIRAS, 2008a). Ou seja, a compreensão da corrupção nasce de
concepções consensuais definidas como valores normativos
fundamentais, que têm uma natureza linguística originada
comunicativamente de acordo com concepções de bom governo e só pode
ocorrer no âmbito de uma sociologia das relações de poder, de acordo
com as significações que ela pode assumir na sociedade. Essas
significações são derivadas de um processo hermenêutico realizado na
esfera pública, de acordo com consensos normativos estabelecidos
deliberativamente, os quais definem conteúdos substantivos de valores
- no plano da moralidade política - e definem sua contraparte normativa
da corrupção.
A
corrupção, no plano da moralidade política, deve ser compreendida a
partir de valores pressupostos, conforme concepções normativas de
interesse público que configuram o que é e o que não é corrupção,
tendo em vista normas que têm um caráter formal ou informal. Por esta
assertiva, a corrupção espelha, sobretudo, uma natureza moral que
depende dos juízos que atores relevantes fazem a respeito da ordem
política. Assim, a corrupção é, consequentemente, um juízo moral
(FILGUEIRAS, 2008a), com base no qual consideramos determinada ação
política correta ou incorreta, de acordo com valores pressupostos que
definem um conteúdo normativo da moralidade. Dessa forma, quando
dizemos, no plano do discurso político, que determinado agente A é
desonesto, usou indevidamente os recursos públicos, cometeu uma
improbidade administrativa, usou de clientelismo para se eleger ou
simplesmente utiliza seu poder para obter alguma vantagem, julgamos
que ele cometeu um ato de corrupção.
O
modelo analítico parte de uma concepção habermasiana da questão da
moralidade, em que a construção da ação política legítima depende
da justificação e aplicação racional de valores e normas (HABERMAS,
2004). Os consensos normativos constituem-se como expectativas
normativas e são fundamentados na práxis pública de
justificação racional de valores por parte de uma comunidade de
comunicação, visando estabelecer a verdade de enunciados normativos
em função de razões justificadoras, as quais asseguram um processo de
aprendizado moral. Isso é, as convicções normativas partilhadas
intersubjetivamente têm uma função cognitiva que levam as partes
conflitantes a um constante experimentar de normas colocadas à
deliberação. O saber moral é sempre empregado na construção dos
consensos normativos, tendo em vista o fato de a justificação
racional de normas ocorrer em paralelo à sua constante crítica. A
moralidade, desse modo, tem uma função epistêmica e uma natureza de
correção, que opera com justificações racionais dadas ao
entendimento. A fundamentação de normas morais, de acordo com
Habermas, ocorre por uma atitude autocrítica nos contextos de
aplicação, a par de uma troca empática das perspectivas de
interpretação oferecidas por contextos de justificação. Os juízos
envolvem uma moralidade configurada em torno de uma justificação
racional de valores dados à aplicação por meio de normas que assumem
uma natureza jurídica no plano formal, e cultural no plano informal5.
Portanto,
quando dizemos que um agente A cometeu um ato de corrupção, tomamos
como conteúdo do juízo moral expectativas normativas, que têm uma
natureza consensual na esfera pública. Espera-se que esse mesmo político
A seja honesto, aja com decoro e respeito aos deveres cívicos,
atenda às necessidades da sociedade, seja capaz de legislar e
executar normas que visem à segurança da comunidade, aloque recursos
da maneira o mais eficiente e trate a coisa pública de modo exemplar.
Ao contrário disso, julgamos a ação desse mesmo político como um ato
de corrupção. Por essa assertiva, o conceito de corrupção não se
resume aos interesses dos agentes, nem mesmo às normas jurídicas do
ordenamento político, assumindo um caráter plástico que apenas pode
ser definido no contexto linguístico, em que esses juízos são
realizados (FILGUEIRAS, 2008a).
A
moralidade política, nesse sentido, congrega preferências fortes por
valores e normas definidos consensualmente, permitindo ao sujeito
julgar a ação política com base em princípios legitimadores, que têm
uma forma geral e pressuposta, de acordo com expectativas de ação
corretas por parte dos agentes e das instituições. De um modo geral,
seguindo a trilha de Charles Taylor (1992), esses juízos estão
referidos às preferências fortes, porquanto sejam formas de
julgamento entrelaçadas às identidades existentes no plano da
comunidade política, assumindo um caráter formal por meio do Direito e
um caráter informal definido no plano da cultura. Os juízos morais,
dessa maneira, espelham um quadro normativo que organiza a ação
política.
Os
juízos morais podem ser diferenciados em juízos de valor e juízos de
necessidade (FILGUEIRAS, 2008a), de acordo com a diferenciação
entre excelência e cotidiano, explorada por Taylor (1992). Excelência
e cotidiano, segundo Taylor, especificam uma antinomia moral, própria
à modernidade, entre os objetivos da vida boa, seguindo a ética
aristotélica, e os objetivos defensivos e econômicos, como marcados
pela filosofia política moderna, originada de Locke. A boa vida, como
aponta a ética aristotélica, apreendida por Taylor, é uma finalidade
da associação política, tendo em vista a identificação entre os
indivíduos em torno de valores comuns, pertencentes a uma ordem de
distinção. De outro lado, a vida cotidiana é aquela que assegura a
reprodução da ordem através da solidariedade em torno de necessidades
vitais. A vida cotidiana é uma forma de associação exclusivamente
privada, porque o self pontual, substancialmente produtor e reprodutor, associa-se exclusivamente pelos objetivos econômicos e defensivos.
Os
juízos morais de valor dependem de relações empáticas que
identificam os atores, porque se mobiliza o conceito de corrupção
para descrever a não excelência da ação do corpo político, em
função de uma configuração de valores que orienta o agir em contextos
sociais complexos. Elementos como decoro, honestidade, cumprimento
dos deveres e virtudes demandam do comportamento dos atores normas
entronizadas, que são aplicadas pela ação virtuosa e pelo respeito
aos costumes de determinada comunidade política singular.
De
outro lado, os juízos morais de necessidade estão ligados à vida
cotidiana, fundamentam a solidariedade como mecanismo primordial da
moralidade. Não se espera do corpo político a excelência do agir, mas
apenas uma neutralidade em relação a valores, que permita a cada
indivíduo satisfazer suas necessidades. Em sociedades complexas,
alicerçadas na vida cotidiana, cabe ao Estado, em face da divisão do
trabalho social, a realização moral do indivíduo. A justificação
racional da segurança e da liberdade demanda apenas a afirmação de
normas que assegurem, respectivamente, a aplicação mediante a
obediência e os direitos, que atuam no plano externo do indivíduo, em
vista de um consentimento.
O
fato é que a distinção entre a vida por excelência e a vida
cotidiana, e, por sua vez, a distinção entre os juízos de valor e
os juízos de necessidade permitem especificar uma antinomia da
moralidade política, que tenciona o conceito de corrupção no plano
da prática social. A corrupção tem uma natureza moral e prática, que
nem sempre são conexas, o que não quer dizer que ela deva ser
tolerada em função de sua natureza complexa.
Até
agora, especificamos o aspecto moral da corrupção, sem nos atermos
ao aspecto propriamente prático. Tratar da moralidade política
significa especular sobre os significados linguísticos da corrupção
(FILGUEIRAS, 2008a). Contudo, esses significados necessitam de uma
teoria da prática que os assente em uma realidade empírica. Os juízos
morais de valor e de necessidade entrelaçam-se na prática social,
representando situações de crítica à ordem política e suas
instituições. Contudo, como toda forma de julgamento, os juízos
morais da corrupção representam situações contraditórias e posições
contingentes, espelhando um processo permanente de confrontação da
livre opinião formada na esfera pública e nas instituições
(FILGUEIRAS, 2008a).
Seguindo
a teoria das práticas de Bourdieu, procura-se superar o fosso que
separa a ação dos agentes e a estrutura social, bem como superar o
problema da consciência e da racionalidade. A prática social, segundo
Bourdieu, correlaciona consciência e inconsciência, racionalidade e
irracionalidade, no sentido de rebaixar o poder da razão e do sujeito
na produção do conhecimento (BOURDIEU, 2005). Do ponto de vista de
uma teoria das práticas, o estudo sociológico concentra-se nas
estruturas estruturantes, fazendo com que o estudo da ação ocorra
pelas disposições dos atores conforme os espaços sociais e seu
capital cultural. Ou seja, de acordo com o autor, o estudo da razão
prática demanda o estudo do conhecimento social pressuposto e do modo
como ele é representado na sociedade.
A
ciência social, como atesta Bourdieu (2005), deve recusar as
alternativas da consciência e da inconsciência, da racionalidade e da
irracionalidade, visto que dicotomias conceituais encobrem os
processos pelos quais os fatos sociais ocorrem. O conceito de habitus,
nesse sentido, procura superar as dicotomias em teoria social,
atrelando às práticas cotidianas o conhecimento moral da sociedade.
No que diz respeito à política, a ação não é nem intencional nem
espontânea, e sim depende do conjunto de interações e do capital
cultural acumulado, que vincula os fenômenos políticos às
manifestações públicas e ao ato público no contexto das instituições.
A sociologia da política não deve estar assentada na dicotomia ação
e estrutura, mas no conjunto das práticas sociais que não são nem
racionais nem irracionais, porém, localizadas no habitus criado no conjunto do mundo cotidiano da sociedade6.
Analisar
a corrupção em seu sentido prático, seguindo a trilha de Bourdieu,
não significa dissociá-la dos valores fundamentais da moralidade
política. Significa, de acordo com o autor, atestar as antinomias do
mundo social e suas contradições, no sentido de perceber uma
estrutura onde essa prática ocorre. De acordo com Bourdieu, no caso
da política, é fundamental pensar os elementos práticos informados
pelo teste moral de universalização. Como aponta o autor:
Colocar a questão da moral na política ou da moralização da política em termos sociologicamente realistas significa interrogar-se, de modo muito prático, a respeito das condições que deveriam ser preenchidas para que as práticas políticas fossem submetidas, permanentemente, a um teste de universalizabilidade; para que o próprio funcionamento do campo político imponha aos agentes aí engajados em tempo integral limitações e controles tais que eles sejam obrigados a seguir estratégias reais de universalização. Vemos que se trataria de instituir universos sociais no quais, como na república ideal de Maquiavel, os agentes teriam interesse na virtude, no desinteresse, no devotamento ao serviço público e ao bem comum.
A moral política não cai do céu; ela não está inscrita na natureza humana. Apenas uma Realpolitik da Razão e da Moral pode contribuir para implementar a instauração de um universo no qual todos os agentes e seus atos estariam submetidos - especialmente pela crítica - a uma espécie de teste de universalizabilidade permanente, instituído praticamente na própria lógica do campo. (BOURDIEU, 1996, p. 221).
A
moralidade política especifica os valores que fundamentam o
julgamento moral da corrupção que significam, dessa forma,
pressupostos que informam o conteúdo do julgamento moral, como
demandado por Bourdieu. A tolerância à corrupção, portanto, ocorre
exatamente no espaço entre os juízos de valor e os juízos de
necessidade, ou seja, entre o limite dos valores e o limite das
necessidades, representando uma antinomia própria das sociedades
contemporâneas. Por essa assertiva, nota-se que moralidade e prática
social têm um aspecto contraditório, uma vez que podemos concordar
com valores morais universais, como por exemplo, o valor da honestidade,
ao mesmo tempo em que podemos agir de forma desonesta. Isso explica o
fato de criarmos a expectativa de que os políticos e cidadãos sejam
honestos, mas o sujeito, ao mesmo tempo, querer entrar em um esquema
de corrupção, tendo em vista interesses bem determinados, na esfera
econômica e social. A antinomia entre juízos de valor e juízos de
necessidade permite compreender a antinomia existente entre
moralidade e prática social, explicando a tolerância à corrupção nas
sociedades contemporâneas.
A
antinomia entre normas morais e prática social cria um contexto de
tolerância à corrupção que explica o fato de atores, consensualmente,
concordarem com a importância de valores fundamentais como respeito,
honestidade, decoro e virtudes políticas, mas, ao mesmo tempo,
concordarem que, na política, um pouco de desonestidade pode cumprir
uma função importante. Em um sentido bastante maquiaveliano, é
importante distinguir a política do mundo real e os valores
normativos que são passíveis de acordo racional, o que explica esse
contexto de tolerância. É dessa forma que a corrupção é normal à
política, apesar de todos os esforços para impedi-la7.
Os juízos morais de valor - pautados pela vida pela excelência - e
os juízos de necessidade - pautados pela vida cotidiana - explicam a
antinomia existente entre normas morais e prática social da corrupção,
de acordo com a definição de limites teóricos que a circunscrevem.
Ou seja, de acordo esses limites, é possível definir uma taxonomia
da corrupção conforme seu alcance na prática social. A corrupção pode
ser controlada, tolerada ou endêmica, de acordo com seu alcance
prático na sociedade. A figura a seguir procura representar,
graficamente, essa taxonomia da corrupção:
No
caso da corrupção controlada (A), não há antinomia entre normas
morais e prática social, representando uma situação ideal em que
valores e necessidades convergem em uma razão prática que mantém a
corrupção sob controle. Esse tipo de corrupção pressupõe uma
sociedade estóica e dirigida pelos deveres, funcionando como uma
espécie de modelo normativo perfeito, mas que não encontra
efetividade no mundo real. No caso da corrupção tolerada (B), está
presente a antinomia entre valores e necessidades, em que os atores
sociais são capazes de concordar com os valores fundamentais da
política, mas, no plano prático, não transformam esses significados
morais em uma prática efetiva. A tolerância à corrupção está
relacionada a contextos sociais marcados pelo mundo dos interesses
cotidianos, em que a atividade política é realizada na dimensão da
representação. Finalmente, no caso da corrupção endêmica (C), a
antinomia entre valores e necessidades desaparece pela ausência de
significados morais para a vida social e uma prática predatória,
marcada por baixa solidariedade. Esse cenário ocorre em contextos
pouco comuns, mas empiricamente encontrados, representando situações
de rupturas políticas e decadência institucional.
Taxonomias
semelhantes a essa, que especulam sobre a tolerância da corrupção no
contexto de sociedades democráticas, já foram produzidas, como no
trabalho de Heidenheimer (2001). O autor buscou os critérios de
tolerância à corrupção pela análise de variáveis atitudinais que
revelem o modo como os cidadãos percebem e combatem a corrupção, ao
mesmo tempo em que ela pode ser encarada como uma prática corriqueira
no cotidiano da vida social. Nesse sentido, de acordo com Heidenheimer
(2001, p. 152), a corrupção pode ser negra, cinza ou branca: é
negra quando as elites políticas e a opinião pública formam um
consenso de que a corrupção deve ser punida por razão de princípio; é
cinza quando as elites e a opinião pública não formam esse consenso a
respeito da punição da corrupção, fazendo com que alguns concordem
com sua punição por princípio e outros não e, finalmente, é branca
quando a corrupção ganha um aspecto tolerável, em que não existe
apoio público à punição.
A
taxonomia de Heidenheimer leva em consideração o fato de que a
tolerância à corrupção espelha o apoio público à imputação de
punições a casos de corrupção. A tolerância à corrupção é explicada
por Heidenheimer (2001) pelo caráter atitudinal de apoio das elites
políticas e da opinião pública de massas a uma cultura da punição e
da criação de sistemas de vigilância à corrupção. Ou seja, o autor
procura equilibrar variáveis de percepção da corrupção com a prática
de punição no interior de sociedades. Especulo, ao contrário, que a
tolerância à corrupção, como expusemos acima, nasce de antinomias
existentes na cultura política de fundo, tendo em vista as
contradições espelhadas na avaliação da opinião pública de casos de
corrupção. O objetivo da taxonomia exposta, considerando a corrupção
controlada, a corrupção tolerada e a corrupção endêmica, não é
contrastar o apoio público à punição da corrupção, mas contrastar o
modo como os indivíduos avaliam a corrupção em confrontação com os
aspectos morais - de acordo com valores e normas - e prática social -
no âmbito do cotidiano. Pensar a corrupção negra significa especular
sobre um sistema de vigilância à corrupção muito próximo de formas
autocráticas de poder. Isso é, nas democracias é normal alguma
tolerância à corrupção, desde que ela não se torne um tipo de
endemia social.
Do
ponto de vista teórico, esse modelo analítico permite investigar as
razões pelas quais indivíduos toleram a corrupção, sendo esse o
cenário típico das sociedades contemporâneas. Na modernidade, a
corrupção é tolerada como uma prática normal, o que não quer dizer
que ela seja correta. A corrupção controlada é um tipo ideal em que
moralidade política e a prática social coincidem, pressupondo uma
sociedade homogênea - e porque não autocrática - onde não há
divergência a respeito dos valores políticos básicos e das práticas
sociais corretas e incorretas. Seria, grosso modo, uma cidade
platônica, governada por um demiurgo. A corrupção endêmica parte da
assunção de que é possível a corrupção representar os momentos de
decadência institucional porquanto não há consenso a respeito dos
valores políticos básicos e muito menos a respeito de quais práticas
são permitidas no âmbito da sociedade. Ou seja, representa uma
situação em que a corrupção esteja associada a uma possível falta de
sociabilidade. A próxima seção cuida de analisar, empiricamente, a
corrupção a partir desse modelo de análise, tomando o caso do Brasil,
de acordo com os resultados do survey Os brasileiros e a corrupção8.
A tolerância à corrupção no Brasil
Boa
parte das pesquisas relizadas a respeito do tema da corrupção tem
considerado como elemento primordial para sua compreensão a percepção
que cidadãos comuns têm a respeito dela. Como destaca Abramo (2005),
o problema de abordar a corrupção empiricamente é o fato de não
haver uma forma de medição direta desse fenômeno, o que pode
significar o fato de ser possível que essas pesquisas apresentem
vieses e controvérsias interpretativas, que pouco esclarecem o seu real
alcance na sociedade.
Abramo
crítica o Índice de Percepção da Corrupção da Transparência
Internacional (TI), que faz um ranking da corrupção para diferentes
países, tendo como primeira objeção o fato de permitir inclinações
ideológicas. A segunda objeção está no fato de haver uma imprecisão
estatística dada por uma escala de 0 a 10 com intervalos de confiança
que podem chegar a 2. Como o autor mostra, casos como o do Suriname,
em que o índice equivale a 3,6, um intervalo de confiança de 2,0
pode colocá-lo numa posição de corrupção sistêmica ou, ao mesmo
tempo, de razoável controle. A terceira objeção à ideia de percepção
está no fato de os dados de cada país serem escalonados em um
ranking. A rigor, se um país melhora n posições no ranking, isso significa que outro descendeu n
posições, podendo haver a hipótese de a corrupção nesse segundo país
não ter se alterado, apesar de ele cair no ranking. A quarta objeção
é que a montagem de um ranking não oferece uma compreensão mais
ampla a respeito dos sistemas de integridade dos diferentes países.
Isso não permite uma comparação entre eles, nem mesmo de boas
experiências de controle da corrupção. Por fim, o autor formula uma
quinta objeção, subsidiária, que estaria na possibilidade de uso
instrumental do ranking (ABRAMO, 2005, p. 34-35).
As
críticas apresentadas apontam para a vulnerabilidade do conceito de
percepção, uma vez que coletar uma medida de corrupção pela percepção
significa compreendê-la por algo que é volúvel e suscetível à
exposição por parte da mídia. Governos normalmente justificam um
suposto aumento da corrupção pelo modo como ela é desvelada pela
mídia e sua influência na opinião pública. Acertadamente, Abramo
aponta a cautela que devemos adotar com relação ao conceito de
percepção, uma vez que ele não significa uma medida direta do
fenômeno empírico, mas uma medida indireta que não permite uma
conclusão a respeito da corrupção existente em determinado país. No
caso brasileiro, as séries históricas realizadas pela Transparência
Internacional, em parceria com o IBOPE, demandam esse cuidado porque
não revelam o tamanho da corrupção no país, mas aspectos que podem
ser considerados na compreensão que a sociedade tem da corrupção.
Apesar
de ser uma medida indireta, consideramos que a questão da percepção
pode revelar traços dos elementos culturais da corrupção. É nessa
dimensão que o conceito de percepção da corrupção pode ser útil, ou
seja, pode revelar uma cultura política de fundo informada por
perspectivas atitudinais delimitadas por variáveis abrangentes e
indiretas. Por percepção da corrupção compreendemos uma medida
indireta balizada no modo como os indivíduos descrevem o fenômeno. A
percepção, nesse sentido, tem dois elementos que precisam ser
considerados: (1) o elemento propriamente descritivo em que o
indivíduo delineia certo objeto; (2) os parâmetros utilizados para
realizar a descrição. Um indivíduo percebe algo quando formula
impressões a respeito do objeto com base em parâmetros pressupostos
para a sua compreensão. Nesse caso, partimos da premissa de que a
percepção da corrupção por parte do cidadão comum significa sua
capacidade de descrever e avaliar a corrupção com base em parâmetros
morais definidos previamente. Como afirmamos anteriormente, na
terceira seção deste artigo, a corrupção expressa um juízo moral, em
que o indivíduo avalia a ação praticada por um agente com base em uma
moralidade pressuposta, fundamentada em consensos a respeito de
valores e normas que organizam concepções de bom governo.
Do
ponto de vista da análise empírica da tolerância da corrupção no
Brasil, nos pautamos em uma pesquisa de percepção, tomando o cuidado
de recortar o modo como ela é percebida no âmbito da cultura
política. Os dados expostos não revelam uma medida direta da
corrupção, mas uma medida indireta que procura a forma como ela é
percebida na dimensão da opinião pública brasileira. A análise
empírica da corrupção no Brasil, com base no modelo analítico
apresentado, está baseada em um survey realizado pelo Centro de
Referência do Interesse Público (CRIP), da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG).
A
pesquisa procurou compreender o modo como o brasileiro percebe o
problema da corrupção na política, de maneira a configurar uma visão
geral que permita compreender noções gerais de conceitos políticos e o
modo como essa percepção é construída no sentido de tornar a
corrupção tolerada. É importante ressaltar que o modo como a
corrupção se torna aparente nos meios de comunicação pode alterar a
sua percepção, sendo volátil e suscetível à mídia, bem como marcada
por muitos aspectos subjetivos. Contudo, neste artigo, analiso
aspectos relacionados à tolerância à corrupção na política
brasileira, tendo em vista, uma antinomia entre normas morais e
prática social. O tratamento segue um recorte na dimensão da cultura
política,através do qual procuro pelas normas morais que funcionam
como parâmetro da percepção da corrupção em contraposição ao modo
como os indivíduos descrevem algumas práticas sociais. A tolerância à
corrupção, baseada na noção que apresento de percepção, deriva do
modo como o brasileiro compreende determinadas normas morais em
confrontação com concepções práticas. Não esgoto as possibilidades
do survey, mas apresento alguns dados relacionados à dimensão da
cultura política.
Em
primeiro lugar, chamo a atenção para os modos de acordo com os quais
o brasileiro compreende o conceito de interesse público. Procuro
contrastar noções de interesse público que se ligam exclusivamente a
uma noção de Estado com concepções de interesse público ligadas a
uma noção de responsabilidade coletiva ou utilitária, sendo, nesse
último caso, o interesse público compreendido como aquilo que
interessa ao maior número de pessoas. As noções de interesse público
expostas influenciam no modo como o brasileiro pensa a corrupção. De
acordo com os dados, a corrupção no Brasil está ligada a atos
ilícitos praticados por funcionários públicos, não percebendo a
possibilidade de a corrupção poder ser praticada na dimensão privada (Tabela 1):
No
âmbito do survey, perguntou-se qual tipo de corrupção prejudicaria
mais o Estado, se aquela praticada exclusivamente por funcionários
públicos, ou aquela que pode ser praticada por qualquer pessoa. Ao
analisar a Tabela 2,
verifica-se que 45,4% da amostra pensam que "Um ato que prejudica o
Estado praticado por um funcionário público ou político" é a mais
corrupta das situações. 29,1% acreditam que a situação mais corrupta é
"Um ato que prejudica o Estado praticado por qualquer pessoa" e
21,9% creem que "As duas situações são igualmente corruptas".
Cruzando
as duas questões, obtém-se uma associação entre as duas
variáveis, em que concepções de interesse público influenciam o modo
como os brasileiros percebem situações de corrupção. Nesse caso, o
modo como o brasileiro compreende a questão do interesse público,
afirmando que ele é de responsabilidade do Estado, implica o fato de
ele compreender a corrupção como praticada por funcionários públicos.
Como o interesse público representa, na dimensão do imaginário
coletivo brasileiro, uma ideia de interesse do Estado, é esperarado
que a corrupção seja compreendida na esfera estatal e não na dimensão
da sociedade em seu conjunto. Nesse caso, a cultura política
vincula, de alguma maneira, o tema da corrupção ao tema do Estado,
sem perceber a corrupção que é praticada na dimensão da sociedade.
No
teste do Qui-quadrado, constatamos uma alta associação entre as duas
variáveis, sendo ela significativa na dimensão da amostra, revelando
uma dependência entre concepções de interesse público e de
corrupção. De uma forma muito superior à esperada, aquelas pessoas
que possuem uma definição mais ampla de interesse público - "Todas as
frases explicam do mesmo modo o que é interesse público" - tendem a
considerar que as duas situações apresentadas são igualmente
corruptas.
A Tabela 5
procura compreender o modo como o brasileiro percebe a corrupção na
dimensão das instituições. Foi pedido ao entrevistado que desse uma
nota, variando em uma escala de 0 a 10, para a presença da corrupção
em alguns ambientes institucionais, tanto públicos quanto privados.
Nos extremos, a nota zero expõe nenhuma corrupção e a nota dez expõe
muita corrupção. A tabela apresenta a análise das médias de notas
atribuídas pelos entrevistados, expressando que a corrupção está mais
presente nas instâncias representativas, em especial nas Câmaras de
Vereadores, na Câmara dos Deputados, nas Prefeituras e no Senado
Federal, e que tenham, de alguma forma, relação com o Estado.
Importante notar que os ambientes institucionais que obtiveram
indicadores médios acima da média das médias, à exceção da Polícia
Federal, têm uma natureza pública e estatal. Por outro lado, os
ambientes institucionais que obtiveram indicadores médios abaixo da
média das médias têm uma natureza privada. Esse dado permite
especular que o brasileiro exige excelência das instituições públicas
e estatais, percebendo de forma um pouco mais branda a corrupção
que é praticada no mundo privado, ligado às necessidades cotidianas9.
Na Tabela 6,
foi pedido aos entrevistados uma nota de zero a dez para determinados
casos, sendo zero a representação de casos de nenhuma corrupção e
dez para casos de muita corrupção. O objetivo foi medir a intensidade
com que os entrevistados consideram determinadas situações como
muito ou pouco corrompidas ou corruptoras. Os entrevistados consideraram
os casos apresentados como de muita corrupção, com médias
bastante altas, à exceção dos casos de subornar um funcionário
público para tirar um documento mais rápidamente ou praticar grilagem
de terras do governo. Existe, nesse sentido, um parâmetro moral,
pressuposto de acordo com concepções normativas de certo e errado, em
que a corrupção é condenável do ponto de vista dos valores da
sociedade. Contudo, os dados da Tabela 7 revelam que os mesmos entrevistados concordam com situações em que a corrupção pode ser praticada.
A Tabela 7
mostra resultados obtidos quando os entrevistados foram questionados a
respeito de algumas situações práticas que poderiam representar a
corrupção. O objetivo desse questionamento era considerar antinomias
possíveis entre normas morais e prática social, tendo em vista dados
categóricos que perguntavam se o entrevistado concorda ou não com a
situação exposta. O caráter subjetivo de todo survey, dessa forma,
pode subestimar se, de fato, diante de uma situação prática, o
indivíduo entraria ou não em um esquema de corrupção, por exemplo.
Contudo, os dados mostram que é relativamente alto o percentual de
pessoas que concordam com situações de corrupção e julgam que ela
seja algo "natural" à política. Pelo conceito de prática de Bourdieu
(2005), é importante compreender que essas representações espelham
situações concretas relacionadas a um capital cultural acumulado na
sociedade brasileira, definindo, dessa forma, os elementos da ação
social. Assim, essas considerações a respeito da corrupção no Brasil
carregam um sentido prático definido em torno de concepções culturais
e um conhecimento social latente. Os dados da Tabela 7
mostram que, apesar de as pessoas concordarem com determinadas
normas morais, como, por exemplo, o valor da honestidade, elas estão
propensas a participar de esquemas de corrupção.
As concepções apresentadas na Tabela 7
mostram elementos plásticos e bastante flexíveis a respeito da
corrupção. Mas por que poderíamos dizer que existe uma tolerância à
corrupção no Brasil? Ao mesmo tempo em que os entrevistados
consideram as ações descritas na Tabela 6
"muito corruptas", uma parte considerável deles concorda em entrar
em um esquema de corrupção (30%), admite que qualquer um pode ser
corrompido, dependendo do preço (39%), que a corrupção e a
honestidade veem de berço (55%), que a corrupção é válida para ajudar
os mais pobres (26%), que sonegar imposto é válido (36%), que o
conceito de honestidade é relativo (48%), que não tem jeito de fazer
política sem um pouco de corrupção (31%), que a corrupção é válida
para proteger alguém da família (25%), que em casos de necessidade é
correto vender o voto (26%), que subornar um guarda não chega a ser
um ato corruptor (24%). A Tabela 7,
por sua vez expõe concepções práticas comuns ao cotidiano e que
envolvem o tema da corrupção. É notável que essas concepções práticas
são passíveis de avaliação por parte do entrevistado, que o faz
tomando perspectivas morais de correção da ação, isso é, se a ação
descrita é correta ou não com base em deveres morais do cidadão.
Nesse caso, contrastando com a Tabela 6,
percebemos a posição dúbia do entrevistado. Ele considera
determinadas ações erradas, mas, diante de um cotidiano marcado por
necessidades, ele tem uma propensão a tolerar certa corrupção. Não há
consenso sobre as situações expostas na Tabela 7,
porquanto as discordâncias são elevadas. Na maior parte das vezes,
foram colocadas situações movidas por necessidades, como impostos,
proteção da família, ajuda aos pobres, etc. É esse contexto de
necessidades que contradiz a imoralidade descrita para a corrupção,
criando um contexto de tolerância a esse tipo de prática.
O que os dados da Tabela 7 revelam, em contraposição à Tabela 6,
é uma antinomia, existente no Brasil, entre normas morais e prática
social. Ou seja, a corrupção não pode ser explicada pelo caráter do
brasileiro, por sua cordialidade, malandragem ou esperteza, porque
ele é capaz de absorver conteúdos substantivos da moralidade
política, ao discordar de situações de corrupção. Os entrevistados
consideram errado um político receber dinheiro para favorecer uma
empresa em uma licitação, ou um empresário financiar campanhas
esperando receber algo em troca. Porém, quando é para proteger a
família, um pouco de corrupção é tolerável ou, se houver necessidade,
é correto vender o próprio voto. Nesse caso, os entrevistados têm
noção dos valores públicos, mas os juízos de necessidade corrompem,
frente a uma tolerância da corrupção vista no outro, nunca em si
mesmo. Existe uma disposição prática do brasileiro a entrar em
esquemas de corrupção, que contrasta com sua configuração moral.
Somos capazes de, consensualmente, concordar com determinados valores
morais, mas toleramos certa corrupção porquanto ela esteja referida a
um capital cultural que a torna cotidiana e latente, com uma natureza
extremamente flexível, sendo aplicada a situações muito diferentes.
É no intermédio dos juízos de valor e dos juízos de necessidade -
como na Figura 1 - que a tolerância à corrupção opera.
A
tolerância à corrupção não é um desvio de caráter do brasileiro,
uma propensão e culto à imoralidade, nem mesmo uma situação de
cordialidade, mas uma disposição prática nascida de uma cultura em
que as preferências estão circunscritas a um contexto de
necessidades, representando uma estratégia de sobrevivência que
ocorre pela questão material. A tolerância à corrupção não é uma
imoralidade do brasileiro, mas uma situação prática pertencente ao
cotidiano das sociedades capitalistas. A confrontação entre
excelência e cotidiano cria uma antinomia entre valores e prática,
tornando a corrupção um tipo de estratégia de sobrevivência, mesmo em
um contexto onde a moralidade existe. Isso implica que a corrupção
represente um desafio à democratização brasileira, não no plano
formal, mas no plano da cultura política. Não se pode dizer, portanto,
que o brasileiro típico represente um caso de ausência de virtudes.
As democracias não podem confiar apenas nas virtudes dos cidadãos,
uma vez que é fundamental pensar a efetividade das leis. As virtudes
são necessárias, mas não representam uma condição suficiente para
manter o funcionamento da democracia. É necessário pensar, porém, no
caso brasileiro, um processo de democratização no plano da
sociabilidade e da cultura, tendo como horizonte uma democracia que
não se resuma a seus ritos formais, mas que seja capaz de garantir a
adesão do cidadão comum às instituições democráticas, tendo em vista a
efetividade da lei e mecanismos democráticos de controle da
corrupção. O que poderia tornar a corrupção no Brasil endêmica seria a
possibilidade dos valores públicos degenerarem.
Considerações finais
A
pesquisa apresentada carece de um sentido comparativo com
experiências internacionais, bem como de uma série histórica que
permita inferências mais conclusivas. Contudo, os dados apontam para o
fato de que a democratização brasileira ainda carece de efetivação
de princípios e valores fundamentais que alicercem uma cultura
política democrática. Apesar de avanços nesse caminho, como
demonstram Moisés e Carneiro (2008), ainda persistem posições céticas
e cínicas entre os cidadãos em relação às instituições formais. O
resultado é a constatação de uma síndrome de desconfiança e
indiferença.
A
posição contraditória do cidadão comum em relação à corrupção
acarreta esse contexto de tolerância, fazendo com que indivíduos
tomem atitudes em que preferem aderir a esquemas de corrupção e
afirmar que as pessoas têm um preço a seguirem a lei. Os dados
mostram, entretanto, que esse mesmo cidadão comum é capaz de
reconhecer valores morais fundamentais e, consensualmente, reconhecer
que esses valores são importantes na dimensão da sociabilidade e da
política. Isso ocorre, do ponto de vista normativo, pela cisão entre
valores e necessidades, configurando juízos muitas vezes assentados
em uma visão agonística da vida, sem perceber a necessidade de
concepções mais amplas de vida republicana. Essa posição da
cidadania, tendo em vista o problema da corrupção, tem por
consequência reduzir a accountability do sistema político, ao
enfraquecer o sistema de fiscalização em relação às atividades das
instituições políticas. Falta, nesse sentido, uma noção mais ampla
de público a partir da qual se deve pensar o tema da corrupção não
apenas no plano das instituições formais da democracia, mas na ideia
de vida democrática.
No
que diz respeito à corrupção, constata-se que não basta uma mudança
do aparato formal ou da máquina administrativa do Estado propriamente
dita, mas reforçar os elementos de uma cultura política democrática
que tenha no cidadão comum, feito de interesses, sentimentos e razão,
o centro de especulação teórica e prática para uma democratização
informal da democracia brasileira. Os avanços das reformas da
máquina pública, nas duas últimas décadas, são inegáveis, com o
reforço da transparência. Contudo, falta, à democracia brasileira, um
senso maior de publicidade, pelo qual a transparência esteja
referida a uma ativação da cidadania, à accountability e à
participação, sem os quais os esforços de combate e controle da
corrupção ficarão emperrados em meio a uma cultura política tolerante
às delinquências do homem público.
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Recebido para publicação em março de 2009.
Aprovado para publicação em julho de 2009.
Aprovado para publicação em julho de 2009.
Fernando Filgueiras - fernandofilgueira@hotmail.com
1 A vertente do patrimonialismo, no âmbito do pensamento social e político brasileiro, é derivada de Os donos do poder, de Raymundo Faoro. De acordo com essa vertente, formou-se, no Brasil, um Estado centralizador e expropriador da riqueza, que estaria assentado na existência de um estamento que se alojou na burocracia estatal, de modo a construir todo um sistema de privilégios. Como destaca Campante, o conceito de patrimonialismo em Faoro dista do conceito original, presente na obra de Weber. De acordo com Campante, em Weber, o conceito de patrimonialismo é um princípio de legitimação, baseado em um mundo tradicional, em que, nem sempre, o Estado é centralizado, como, por exemplo, no sistema feudal. A recepção do conceito de patrimonialismo em Faoro, nesse sentido, obedece a uma ampla confusão conceitual e metodológica. A esse respeito, conferir Campante (2003).
2 Não é ponto pacífico nas interpretações do Brasil a vinculação de Sérgio Buarque de Hollanda à vertente do patrimonialismo. Essa vinculação surge a partir da interpretação de Raízes do Brasil feita por Antônio Cândido, que vinculou as leituras do autor em relação à obra de Weber a partir do conceito de patrimonialismo. Hollanda tratava, na verdade, do conceito de patriarcalismo, que está centrado mais na existência de uma privatização do poder, na dimensão da família patriarcal, do que propriamente na existência do Estado ou de qualquer tipo de legitimação. A esse respeito, confrontar Cândido (1995).
3 Interessante notar, como mostra José Murilo de Carvalho, que nos diferentes momentos de rupturas de regimes, no Brasil, sempre esteve presente o tema da corrupção no interior do debate político e no discurso das forças políticas. Vale lembrar, como mostra o autor, o modo como os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus representantes de carcomidos, o papel do udenismo na denúncia do mar de lama do Catete, o modo como o golpe de 1964 foi dado contra a subversão e contra a corrupção, as denúncias contra a corrupção do regime militar, já no início do período da Nova República. A esse respeito, conferir Carvalho (2008).
4 Importante frisar que me refiro à moralidade como valores sociais básicos, que definem a responsabilidade do indivíduo frente à sociedade. Não trato, neste artigo, de termos éticos, porque não pressuponho a existência de valores particulares. Dessa forma, a confrontação entre ética e moral perpassa o argumento, à medida que o conceito de corrupção tem uma conotação normativa, tendo em vista a questão da correção de normas morais. Nesse sentido, termos como decoro, honestidade, confiança e respeito têm um caráter normativo de posições corretas do indivíduo frente à sociedade, que nem sempre serão éticas, do ponto de vista de definições do bem. Tratar da moralidade, portanto, não significa uma abordagem moralista, uma vez que não questiono se a corrupção é boa ou ruim, se tem custos ou benefícios. A esse respeito, conferir Habermas (2004).
5 A respeito do conteúdo da moralidade política e dos consensos normativos, conferir Filgueiras (2008a).
6 O conceito de habitus é um tipo de operação teórica preocupada com as disposições, os modos de perceber, de pensar e de sentir que levam os atores a agirem de uma maneira, em uma circunstância dada. Essas disposições para a ação, como circunscreve Bourdieu em relação ao conceito de habitus, não são determinadas nem mecânicas. São produtos de uma aprendizagem social, flexível e plástica, porquanto constituem o modo de valorizar e julgar o mundo. O habitus conforma a ação a certos princípios construídos pelos valores em estado prático e, portanto, não conscientes. Como afirma o autor, o habitus é estruturado e estruturante, visto que são disposições interiorizadas pelos indivíduos, no plano da estrutura, e geradoras de práticas e representações coletivas, no plano da estruturação. O habitus não depende de uma consciência ou de um cálculo racional dos fins, porque é o princípio de um conhecimento social não consciente, adquirido cognitivamente conforme mecanismos de percepção e valoração do mundo cotidiano.
7 O caráter de normalidade da corrupção não significa que ela possa trazer benefícios para o desenvolvimento ou algo parecido. Seguindo a linha de Durkheim (2003), a corrupção é normal desde que não represente um processo de decadência institucional (patologia) da sociedade. Por ser normal, ela precisa ser combatida e punida, porquanto se sair de controle, pode contribuir para a decadência de instituições.
8 Survey realizado pelo Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aplicado à amostra nacional entre 10 e 16 de maio de 2008, pelo instituto Vox Populi. A amostra foi estratificada pelas regiões do território brasileiro e aplicada a um universo de 2421 indivíduos maiores de 16 anos. As cotas utilizadas para a seleção dos entrevistados foram: situação do domicílio, gênero, idade, escolaridade, renda familiar e situação perante o trabalho, calculadas proporcionalmente a cada estrato de acordo com os dados do IBGE, Censo 2000 e PNAD 2006. O survey tem um nível de confiança de 95% e margem de erro de +/- 2,0%. A pesquisa constou da aplicação de questionários estruturados a essa população.
9 Testes estatísticos não mostraram significância na correlação entre os dados e indicadores sociais como educação, renda e gênero.
1 A vertente do patrimonialismo, no âmbito do pensamento social e político brasileiro, é derivada de Os donos do poder, de Raymundo Faoro. De acordo com essa vertente, formou-se, no Brasil, um Estado centralizador e expropriador da riqueza, que estaria assentado na existência de um estamento que se alojou na burocracia estatal, de modo a construir todo um sistema de privilégios. Como destaca Campante, o conceito de patrimonialismo em Faoro dista do conceito original, presente na obra de Weber. De acordo com Campante, em Weber, o conceito de patrimonialismo é um princípio de legitimação, baseado em um mundo tradicional, em que, nem sempre, o Estado é centralizado, como, por exemplo, no sistema feudal. A recepção do conceito de patrimonialismo em Faoro, nesse sentido, obedece a uma ampla confusão conceitual e metodológica. A esse respeito, conferir Campante (2003).
2 Não é ponto pacífico nas interpretações do Brasil a vinculação de Sérgio Buarque de Hollanda à vertente do patrimonialismo. Essa vinculação surge a partir da interpretação de Raízes do Brasil feita por Antônio Cândido, que vinculou as leituras do autor em relação à obra de Weber a partir do conceito de patrimonialismo. Hollanda tratava, na verdade, do conceito de patriarcalismo, que está centrado mais na existência de uma privatização do poder, na dimensão da família patriarcal, do que propriamente na existência do Estado ou de qualquer tipo de legitimação. A esse respeito, confrontar Cândido (1995).
3 Interessante notar, como mostra José Murilo de Carvalho, que nos diferentes momentos de rupturas de regimes, no Brasil, sempre esteve presente o tema da corrupção no interior do debate político e no discurso das forças políticas. Vale lembrar, como mostra o autor, o modo como os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus representantes de carcomidos, o papel do udenismo na denúncia do mar de lama do Catete, o modo como o golpe de 1964 foi dado contra a subversão e contra a corrupção, as denúncias contra a corrupção do regime militar, já no início do período da Nova República. A esse respeito, conferir Carvalho (2008).
4 Importante frisar que me refiro à moralidade como valores sociais básicos, que definem a responsabilidade do indivíduo frente à sociedade. Não trato, neste artigo, de termos éticos, porque não pressuponho a existência de valores particulares. Dessa forma, a confrontação entre ética e moral perpassa o argumento, à medida que o conceito de corrupção tem uma conotação normativa, tendo em vista a questão da correção de normas morais. Nesse sentido, termos como decoro, honestidade, confiança e respeito têm um caráter normativo de posições corretas do indivíduo frente à sociedade, que nem sempre serão éticas, do ponto de vista de definições do bem. Tratar da moralidade, portanto, não significa uma abordagem moralista, uma vez que não questiono se a corrupção é boa ou ruim, se tem custos ou benefícios. A esse respeito, conferir Habermas (2004).
5 A respeito do conteúdo da moralidade política e dos consensos normativos, conferir Filgueiras (2008a).
6 O conceito de habitus é um tipo de operação teórica preocupada com as disposições, os modos de perceber, de pensar e de sentir que levam os atores a agirem de uma maneira, em uma circunstância dada. Essas disposições para a ação, como circunscreve Bourdieu em relação ao conceito de habitus, não são determinadas nem mecânicas. São produtos de uma aprendizagem social, flexível e plástica, porquanto constituem o modo de valorizar e julgar o mundo. O habitus conforma a ação a certos princípios construídos pelos valores em estado prático e, portanto, não conscientes. Como afirma o autor, o habitus é estruturado e estruturante, visto que são disposições interiorizadas pelos indivíduos, no plano da estrutura, e geradoras de práticas e representações coletivas, no plano da estruturação. O habitus não depende de uma consciência ou de um cálculo racional dos fins, porque é o princípio de um conhecimento social não consciente, adquirido cognitivamente conforme mecanismos de percepção e valoração do mundo cotidiano.
7 O caráter de normalidade da corrupção não significa que ela possa trazer benefícios para o desenvolvimento ou algo parecido. Seguindo a linha de Durkheim (2003), a corrupção é normal desde que não represente um processo de decadência institucional (patologia) da sociedade. Por ser normal, ela precisa ser combatida e punida, porquanto se sair de controle, pode contribuir para a decadência de instituições.
8 Survey realizado pelo Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aplicado à amostra nacional entre 10 e 16 de maio de 2008, pelo instituto Vox Populi. A amostra foi estratificada pelas regiões do território brasileiro e aplicada a um universo de 2421 indivíduos maiores de 16 anos. As cotas utilizadas para a seleção dos entrevistados foram: situação do domicílio, gênero, idade, escolaridade, renda familiar e situação perante o trabalho, calculadas proporcionalmente a cada estrato de acordo com os dados do IBGE, Censo 2000 e PNAD 2006. O survey tem um nível de confiança de 95% e margem de erro de +/- 2,0%. A pesquisa constou da aplicação de questionários estruturados a essa população.
9 Testes estatísticos não mostraram significância na correlação entre os dados e indicadores sociais como educação, renda e gênero.
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